Recentemente foi amplamente repercutido, em todo o país, um processo que tramita na comarca de Aparecida, no estado de São Paulo, que impediu a construção de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, assim como determinou a retirada de outras cinco obras de arte, e a revogação de áreas doadas para a construção dessas obras artísticas. O pretexto para tal decisão foi a suposta subvenção de uma religião em detrimento das demais, além da destinação das verbas para tal finalidade, “quando existente outras destinações de suma importância”.
Data Maxima Venia ao posicionamento da douta magistrada, mas o conceito de laicidade no Brasil tem sofrido gravíssima deformação ao longo dos anos, fazendo com que vivamos não em um “Estado Laico”, mas sim em um “Estado Laicista”, dominado por um sentimento antirreligioso, que tem como única finalidade reprimir toda e qualquer expressão de religiosidade ao campo exclusivamente privado, no sentido de vedar qualquer intervenção de convicções de raízes religiosas no debate democrático (como se fosse possível a pessoa se dividir entre o cidadão neutro e o cidadão religioso).
Com o reconhecimento da laicidade do Estado, consolidou-se juridicamente a separação institucional entre religião e política, afirmando a neutralidade do Estado frente ao fator religioso. Contudo, essa neutralidade não se compadece com a antirreligiosidade e o extremismo laicista.
Conforme afirma o ilustre jurista Ives Gandra Martins, o Estado Democrático, por sua natureza, é aquele que garante as liberdades públicas e o processo de escolha das opções políticas da sociedade, reconhecendo que há critérios de valor que norteiam essas opções. Portanto são legítimas as manifestações de todos, inclusive de opiniões fundadas em bases religiosas, em defesa desses valores, pois cabe à sociedade formular livremente seu projeto de valor.
A liberdade religiosa é uma consequência natural dos regimes democráticos, em que, no “Estado neutro”, sejam respeitados com igualdade de tratamento, crentes, ateus e agnósticos. Contudo, isso não significa que o prestigio e a valorização de determinadas expressões religiosas sejam consideradas como atos ofensivos ou mesmo diminutivos à outras religiões ou pessoas.
Especificamente sobre a construção da estátua de Nossa Senhora em Aparecida, a própria Constituição Federal em seu artigo 215 afirma que é dever do Estado apoiar, valorizar e difundir as manifestações culturais. Portanto, não se trata de “subvenção” à uma religião, mas sim a valorização do patrimônio cultural brasileiro, e o reconhecimento dos valores cristãos como pilar sobre o qual esse país foi construído.
O Brasil, originalmente batizado como “Terra de Santa Cruz”, tem suas raízes culturais intrinsecamente ligadas a valores e preceitos cristãos. Negar isso é negar nossa própria história, nossa cultura, e nossa própria identidade.
O patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja, no Brasil e no mundo, extrapola as convicções religiosas e permeiam até mesmo o íntimo de pessoas não crentes. É inegável a beleza das obras renascentistas de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael Sanzio; da arquitetura da Catedral de Notre Dame em Paris e da Sagrada Família em Barcelona; a produção intelectual de São Tomás de Aquino e Santo Agostinho; assim como das obras de Aleijadinho. Os exemplos são incontáveis, inestimáveis e incalculáveis.
Por fim, vale ressaltar que o art. 19, I de nossa Carta Magna faz a previsão de colaboração de interesse público entre o Estado com as diversas religiões. A valoração positiva da religião pelo constituinte, impõe ao Estado que coopere com as diversas confissões religiosas, em prol da sociedade. Tal colaboração do Estado, pode ser traduzida em atos materiais e em prestações jurídicas.
Portanto, a única conclusão possível é que a laicidade do Estado deve ser entendida não em uma perspectiva negativa e repressiva do fator religioso, mas sim a partir de conceitos que possibilitem a valorização do patrimônio histórico e cultural brasileiro, e da cooperação entre Igreja e Estado de forma a possibilitar o pleno desenvolvimento econômico, social e, principalmente, espiritual de todos.
*Victor P.S. Naves é advogado, diretor da União dos Juristas Católicos da Arquidiocese de Goiânia – UNIJUC, especialista em Direito Constitucional e Administrativo e mestrando em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.