Entre os fundamentos essenciais do matrimônio cristão está a abertura à vida. Essa disposição, presente no coração do consentimento matrimonial, não se limita ao desejo subjetivo de ter filhos, mas envolve o reconhecimento objetivo da prole como um bem intrínseco ao casamento.
Na prática canônica e pastoral da Igreja, não são raros os casos em que um ou ambos os cônjuges, ao se casar, excluem voluntariamente esse fim. O que muitos desconhecem é que essa atitude pode configurar um vício de consentimento, conhecido como simulação, e dar origem à declaração de nulidade do vínculo matrimonial.
Neste artigo, analisamos essa hipótese com base no Direito Canônico, na doutrina da Igreja e na jurisprudência da Rota Romana. O objetivo é oferecer uma explicação clara, profunda e acessível sobre como a exclusão da prole pode invalidar o casamento.
1. O que significa ordenar o matrimônio à prole?
O matrimônio, na visão da Igreja Católica, é uma instituição natural elevada por Cristo à dignidade de sacramento. O Código de Direito Canônico, no cân. 1055 §1, afirma:
“O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio íntimo de toda a vida, ordenado por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à procriação e educação da prole, entre os batizados foi elevado por Cristo Nosso Senhor à dignidade de sacramento.”
A ordenação à prole significa que o casamento deve incluir, em sua própria essência, a disposição habitual e positiva de acolher a vida. Não se exige que o casal de fato tenha filhos, mas é essencial que reconheça a prole como um dos fins naturais e sobrenaturais do matrimônio.
Se um dos cônjuges, no momento do consentimento, exclui intencionalmente essa dimensão, o matrimônio é inválido desde a sua celebração.
2. A vontade interna deve corresponder ao consentimento externo
O elemento central do matrimônio é o consentimento dos cônjuges. Contudo, não basta que este seja manifestado verbalmente; é necessário que a vontade interna corresponda aos elementos essenciais do vínculo. O cân. 1101 §2 dispõe:
“Se, porém, um ou ambos os contraentes excluem por ato positivo da vontade o próprio matrimônio, algum elemento essencial do matrimônio ou alguma propriedade essencial, contraem-no invalidamente.”
A exclusão da prole, quando consciente e voluntária, constitui uma forma de simulação parcial do consentimento. O vínculo é nulo porque falta a aceitação de um elemento que pertence à própria definição do matrimônio cristão.
Portanto, ainda que a celebração tenha ocorrido de forma válida do ponto de vista externo, a ausência interna de consentimento verdadeiro a um dos fins essenciais invalida o vínculo canônico.
3. Quais são os critérios da Igreja para reconhecer a exclusão da prole?
A jurisprudência da Rota Romana tem estabelecido critérios rigorosos para identificar a exclusão da prole como causa de nulidade matrimonial. Entre os principais, destacam-se:
a) Ato positivo da vontade
É necessário que haja uma decisão consciente e deliberada de excluir a prole. Medos, hesitações ou dúvidas não bastam. O que invalida o vínculo é a determinação firme de rejeitar a geração dos filhos como finalidade do matrimônio.
Esse ato positivo da vontade pode ser comprovado por declarações anteriores ao casamento, por comportamentos e por testemunhos que indiquem que o cônjuge não tinha, no momento da celebração, verdadeira disposição para a abertura à vida.
b) Generalidade e firmeza da exclusão
A exclusão da prole deve ser geral e fortemente desejada. A simples intenção de adiar filhos, quando limitada no tempo e motivada por razões razoáveis, não constitui causa de nulidade. No entanto, quando essa exclusão é expressa de forma definitiva e rejeita habitualmente o fim procriativo, pode configurar simulação.
Casos de exclusão temporária requerem avaliação cautelosa e são tratados separadamente pela jurisprudência canônica, como será abordado no próximo item.
c) Momento da exclusão
A exclusão deve estar presente antes ou durante o momento do consentimento. Mudanças de pensamento ou atitudes posteriores, embora possam ser moralmente questionáveis, não invalidam o vínculo.
A validade do matrimônio é sempre avaliada com base naquilo que ocorreu no instante da celebração, quando os cônjuges emitiram seu consentimento definitivo.
4. A exclusão temporária pode invalidar o matrimônio?
A Igreja reconhece que os casais podem, por razões sérias e proporcionais, adiar a geração de filhos. No entanto, quando essa decisão é tomada de forma indefinida, ou condicionada a fatores subjetivos sem verdadeira abertura futura à vida, pode caracterizar um ato positivo da vontade contrário ao fim procriativo do matrimônio.
Um exemplo típico ocorre quando um cônjuge afirma: “só terei filhos se alcançar um certo padrão profissional”, sem definir prazo, sem abertura real para rever a decisão, e mantendo tal postura no momento do consentimento.
Nesses casos, a jurisprudência da Rota Romana admite que a exclusão temporária, quando suficientemente prolongada ou firmemente querida, se equipara juridicamente à exclusão permanente.
A distinção entre adiamento legítimo e exclusão simulada está na intenção profunda do cônjuge: trata-se de um discernimento delicado, que exige análise de provas, testemunhos e contexto.
5. A prática da contracepção pode indicar exclusão da prole?
O uso de anticoncepcionais, por si só, não invalida automaticamente o matrimônio. No entanto, pode ser um indício relevante, sobretudo quando revela uma rejeição ideológica e definitiva da abertura à vida.
Alguns pontos devem ser analisados:
- O uso da contracepção foi acordado entre os cônjuges como regra de vida?
- A escolha foi motivada por uma recusa absoluta à maternidade ou paternidade?
- A atitude contraceptiva já existia no momento do consentimento?
A Encíclica Humanae Vitae afirma:
“É, ainda, de excluir toda a ação que, ou em previsão do ato conjugal, ou durante a sua realização, ou também durante o desenvolvimento das suas conseqüências naturais, se proponha, como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” (HV, n. 14)
Portanto, quando a prática contraceptiva expressa um ato positivo da vontade contra a prole, ela pode reforçar a tese de simulação matrimonial.
6. Paternidade responsável não é exclusão da prole
A Igreja faz uma distinção clara entre a exclusão da prole — que vicia o consentimento — e o legítimo exercício da paternidade responsável. Esta última é perfeitamente compatível com o matrimônio válido, desde que respeite a abertura habitual à vida.
A Humanae Vitae ensina:
“Se, portanto, existem motivos sérios para distanciar os nascimentos, que derivem ou das condições físicas ou psicológicas dos cônjuges, ou de circunstâncias exteriores, a Igreja ensina que então é lícito ter em conta os ritmos naturais imanentes às funções geradoras, para usar do matrimônio só nos períodos infecundos e, deste modo, regular a natalidade, sem ofender os princípios morais que acabamos de recordar” (HV, n. 16)
O discernimento sobre o espaçamento dos filhos deve ser feito com reta consciência, abertura ao diálogo conjugal e generosidade cristã. Quando vivida com responsabilidade, essa atitude não compromete a validade do vínculo matrimonial.
Conclusão
A exclusão da prole, quando fundada em um ato positivo da vontade e presente no momento do consentimento, constitui causa objetiva de nulidade matrimonial. Trata-se de uma decisão contrária à ordenação essencial do matrimônio à geração da vida, o que fere sua própria natureza sacramental.
Ao mesmo tempo, a Igreja, com prudência e sabedoria pastoral, reconhece a legitimidade da paternidade responsável, quando praticada com generosidade e abertura à vida.
Se você ou alguém que conhece vive uma situação semelhante, é recomendável buscar orientação especializada. O processo canônico de nulidade matrimonial existe não para “anular” um casamento válido, mas para reconhecer, com justiça e verdade, que nunca houve vínculo válido desde o início.