Liberdade Religiosa: Pode o estado limitar atividades religiosas?

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Victor P.S. Naves, Advogado, Diretor da União dos Juristas Católicos da Arquidiocese de Goiânia – UNIJUC, especialista em Direito Constitucional e Administrativo e Mestrando em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

INTRODUÇÃO

A pandemia da COVID-19 nos força a reflexões sobre as mais variadas questões. Dentre elas, o direito à liberdade religiosa tem chamado especial atenção, em decorrência da conflituosa relação entre estado e Igreja.

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A falta de simetria e de planejamento das ações governamentais dos três poderes, em todas as esferas da federação, tem causado grave insegurança jurídica aos cidadãos. Medidas ineficazes, tomadas à margem da Constituição Federal, denotam a arbitrariedade das decisões das autoridades públicas.

A claridade que deve reluzir sobre os meandros do combate a pandemia nos apontará o caminho, que hoje é obscurecido pelos ímpetos emocionais. Devido à escassez de medidas comprovadamente eficazes, e a grave insegurança jurídica que urge, cabe-nos examinar as limitações impostas ao direito fundamental a liberdade religiosa.

A LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO NATURAL

A liberdade religiosa, antes de ser reconhecida pelo ordenamento civil como direito fundamental, é um direito natural. O direito natural não é escrito, não é criado pela sociedade, nem é formulado pelo Estado; ele não depende de lei alguma, é válido universalmente, e é imutável.

O Direito Natural tem por fundamento a natureza e a essência humana. Como os homens são iguais em essência, e a natureza é comum a todos, o direito natural também é o mesmo para todas as pessoas, seja quando ou onde for.

O ilustre jurista catalão, Javier Hervada, afirma que há coisas em si mesmas justas e injustas. Por isso se diz que é de direito natural o que a razão natural determina como justo.

A liberdade religiosa tem sua gênese na liberdade de consciência e na própria dignidade da pessoa humana. Os homens, que são pessoas dotadas de razão e vontade livre, são levados por sua própria natureza e também moralmente, a procurar a verdade. Cada indivíduo tem o direito de perquirir a verdade em matéria religiosa, de modo a formar juízos de consciência.

A natureza social do homem exige que este manifeste publicamente os atos religiosos interiores, e professe de modo comunitário a própria religião. O direito natural a liberdade religiosa não se limita à liberdade de crença e consciência, mas abrange também sua exteriorização.

O exercício da religião, por sua natureza, consiste, basicamente, em atos internos, pautadas pelo livre arbítrio, pelos quais o homem se ordena diretamente para Deus. Os atos humanos que se ordenam à Deus não podem sofrer qualquer tipo de imposições ou restrições de autoridades humanas seculares.

Os atos religiosos, pelos quais os homens, privada e publicamente, se orientam para Deus segunda sua própria convicção, transcendem a ordem terrena secular. Por este motivo, a autoridade civil, que tem como fim próprio olhar pelo bem comum temporal, deve reconhecer e favorecer a vida religiosa dos cidadãos. Do contrário, a autoridade meramente humana excede os seus limites quando impõe ou impede atos religiosos.

A LIBERDADE RELIGIOSA NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO

A liberdade religiosa está vinculada ao princípio da autodeterminação, que é taxativamente prevista em nossa Carta Magna no artigo 4º, III, que reconhece à dignidade da pessoa humana como um dos princípios proclamados da República.

Essa autodeterminação se refere às escolhas pessoais fundamentais. Cada indivíduo tem o poder de autodeterminação, devendo gerir livremente seus interesses, e orientar sua vida de acordo com as suas convicções. Nesse contexto, a liberdade religiosa é expressão da dignidade da pessoa humana, na medida em que expressa o direito de autodeterminação do indivíduo.

A liberdade de consciência e de crença também está assegurada pela Constituição em seu Artigo 5º, VI, da Constituição Federal:

é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Quis o legislador constituinte dar ampla proteção a liberdade religiosa. Em primeiro lugar, garante a liberdade de crença e de consciência, que se encontram no âmbito interno do indivíduo. Por outro lado, a norma também confere especial proteção a exteriorização desses sentimentos, seja através dos cultos ou de outras atividades correlatas, como: adorações, procissões e romarias, por exemplo.

O professor José Afonso da Silva (2014, p. 96) afirma:

A religião não é apenas sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado, não é simples adoração a Deus. Ao contrário, ao lado de um corpo de doutrina, sua característica básica se exterioriza na prática dos ritos, no culto, com suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidade aos hábitos, às tradições na forma indica pela religião escolhida.

Deve ser dada ampla interpretação ao dispositivo constitucional supracitado, em homenagem ao princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, para que seja garantida todas as manifestações externas de religiosidade, como parte intrínseca do direito à liberdade religiosa.

O arcabouço normativo brasileiro contempla também o Decreto nº. 7.107, de 11 de fevereiro de 2010, que promulgou o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do Vaticano em 13 de novembro de 2008.

É imperioso ressaltar que o acordo, concebido originalmente como um tratado internacional, foi recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro como Decreto Legislativo (Dec. 7.107/2010), possuindo, portanto, status de norma infraconstitucional, conforme dispõe o artigo 49, I da Constituição Federal.

O acordo, em seu artigo 2º, afirma:

A República Federativa do Brasil, com fundamento no direito de liberdade religiosa, reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades, observado o ordenamento jurídico brasileiro. 

O compromisso estabelecido entre as Altas Partes Contratantes impõe ao estado brasileiro a obrigação de garantir o exercício público das atividades da Igreja, em seu mais amplo sentido. A norma também exige a observância do ordenamento jurídico pátrio. Portanto é necessária a cooperação entre ambos, para que o objeto jurídico tutelado seja devidamente resguardado.

Já em seu artigo 7º, o referido acordo dispõe:

A República Federativa do Brasil assegura, nos termos do seu ordenamento jurídico, as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo.

Em primeiro lugar, impõe-se ao Estado Brasileiro, através dos poderes públicos, a obrigação de “assegurar as medidas necessárias” para garantir a proteção da liberdade religiosa.

Em seguida, o dispositivo do acordo ainda estabelece o que vem a ser esse objeto jurídico protegido, destrinchando o conceito de liberdade religiosa em diferentes aspectos. Dentre outros, os símbolos, imagens e objetos cultuais, e também a liturgia gozam de especial proteção. O rol contido nesse artigo deve ser interpretado como exemplificativo, pois não se pode restringir o alcance da norma constitucional.

Portanto, proteger o exercício público das atividades da Igreja é garantir que as manifestações religiosas sejam determinadas exclusivamente pelas autoridades eclesiásticas, sob pena de violação do direito constitucional a liberdade religiosa.

DOS LIMITES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Carta Constitucional de 1988 consagra de forma ampla uma série de direitos considerados como fundamentais. Por se tratar de uma Constituição prolixa, eventualmente, surgem conflitos entre essas normas.

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O conflito entre as normas constitucionais torna necessária a limitação parcial de alguns direitos, afim de que se possa preservar um bem maior. Por isso, sob uma perspectiva sistemática, deve-se presar por uma interpretação que se preocupe em resguardar o núcleo essencial de proteção do direito.

O posicionamento da doutrina sobre a questão é clara:

“[…] não existe direito absoluto, entendido como o direito sempre obrigatório, sejam quais forem suas consequências. Assim, os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados. […]” (Carvalho, 2013).

É possível e necessária a limitação de alguns direitos em determinados casos. Contudo, as limitações devem sempre se pautar pelo critério da proporcionalidade. Para a efetivação deste princípio é imperioso que se promova um juízo de ponderação. Deve ser verificado se a medida restritiva é adequada à proteção do bem constitucionalmente garantido.

Para Carvalho (2013):

A posição de limites e restrições aos direitos fundamentais não deve, no entanto, esvaziar o direito fundamental na sua totalidade, isto é, na globalidade do seu sentido ou significado real: há um núcleo duro ou essencial que deve ser protegido, e que se traduz em fundamento, nos elementos que constituem a própria substância do direito fundamental, e que são dele inseparáveis, e não meramente acidentais.

É necessário ter a certeza de que a alternativa escolhida é a menos gravosa, e ao mesmo tempo, que a lesão produzida por essa alternativa seja proporcional à proteção conferida ao bem constitucionalmente protegido, resguardando assim o seu “núcleo essencial”.

As limitações aos direitos fundamentais não podem se dar, de acordo com a mera vontade das autoridades públicas. Cada poder, dentro do sistema de freios e contrapesos, deve exercer sua função conforme lhe é estritamente definido pela Constituição Federal.

O artigo 5º, VI da Carta Magna, ao mesmo tempo em que garante a inviolabilidade do direito de crença e consciência, faz a afirmação que a proteção se dará “na forma da lei”. Como consequência, a própria norma constitucional institui o princípio que a doutrina constitucional denomina de “reserva legal simples”. Isso significa que, através de lei, deve ser definida a extensão da proteção à liberdade religiosa.

A contrário senso, não há autorização do legislador constituinte originário para a limitação desse direito através de lei, mas tão somente a definição sobre as medidas de proteção a serem tomadas.

Por óbvio que as normas advindas desta “reserva legal simples” devem observar os critérios da proporcionalidade e da ponderação. Deve-se objetivar resguardar o núcleo essencial de proteção deste direito, sob pena dessas normas posteriores se macularem com vício insanável de inconstitucionalidade material.

Portanto, o Judiciário cabe esse controle através de seu poder de jurisdição, que se dá por meio do devido processo legal; ao Executivo, caberia certas restrições especificas, dentro de suas atribuições de administrar; ao Legislativo, por fim, além de fiscalizar as ações do Poder Executivo, compete-lhe legislar sobre a extensão da proteção que deve ser outorgada a este direito. Cada poder deve se restringir à prática das funções que lhe são determinadas pela Carta Magna.

DA LIMITAÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO SISTEMA CONSTITUCIONAL DE CRISES

Em situações de excepcionalidade constitucional, a Carta Magna dispõe de um sistema de crises, previsto nos artigos 136 e 137. Esses artigos instituem o “estado de defesa” e o “estado de sítio”, que podem ser declaradas exclusivamente pelo Presidente da República, respeitadas as condições impostas.

Esses dispositivos contemplam expressamente que, nos casos especificamente elencados (que abrange situações epidemiológicas), pode ser decretada a limitação de alguns direitos, dentro de um prazo previamente estipulado, que ficarão sob a fiscalização do Poder Legislativo, que poderá efetuar o controle de eventuais excessos.

Por serem medidas excepcionais, mas previamente estipuladas na Constituição Federal, percebe-se que a situação de insegurança jurídica é diminuta. Ao contrário, as medidas restritivas de direitos que são tomadas pelas autoridades públicas fora do enquadramento constitucional, não obedecem qualquer restrição legal, ficando o poder totalmente concentrado na mão de um único sujeito.

Quaisquer limitações à direitos fundamentais, individuais ou sociais, fora do que está expressamente previsto na Constituição Federal, poderá ensejar a punição por crime de responsabilidade, previstos na Lei 1079 de 1950, em seu artigo 4º, III, ou nas Constituições Estaduais e também em outras leis correlatas.

CONCLUSÕES

É imperioso que em momentos de excepcionalidade o Estado Democrático de Direito e os direitos constitucionais sejam resguardados. As medidas restritivas de direitos somente poderão ser tomadas na exata proporção daquilo que a própria Carta Magna estabelece.

A liberdade religiosa está sujeita unicamente às limitações prescritas pela Constituição. Essas restrições devem ponderadas e considerados como necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde, a moral pública ou os direitos e liberdades das pessoas.

As medidas tomadas devem ser proporcionais e comprovadamente eficazes. Não é possível que o exercício de um direito fundamental seja deixado ao arbítrio da autoridade pública, sem que haja qualquer lastro de eficácia ou indício de razoabilidade. Para tanto, deve-se prezar pela proteção do núcleo essencial do direito tutelado.

Não compete aos poderes públicos se imiscuírem em questões que são próprias da Igreja. Devem ser veementemente rechaçadas quaisquer tentativas de intromissões no âmago das atividades religiosas, por estarem sujeitos apenas ao poder da autoridade eclesiástica.

Do contrário, os poderes públicos devem se restringir a prescrição de normas técnicas que visem resguardar a saúde e a segurança das pessoas. Exemplos práticos são a aferição de temperatura para ingresso nos cultos, limpeza dos calçados, exigência de ventilação, distanciamento físico entre fieis, dentre outras ações que lhe caibam, desde que a medida seja proporcional, e que haja comprovação científica de sua eficiência.

À liberdade religiosa, hoje mártir dos direitos individuais, deve ser resguardada com o máximo rigor, a fim de que sejam evitados arbítrios e eventual violação de direitos. A relação entre estado e Igreja deve convergir para o bem do povo, sob a égide do princípio da cooperação, visando sempre o bem-estar físico e espiritual de todos.

Referências

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