Recentemente uma jovem de 17 anos, moradora de Brasília, que teve educação domiciliar de 2011 a 2014, após fazer a prova do Enem conseguiu, na Justiça, o direito de ingressar na faculdade. A decisão é inédita no País. No entanto, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFB) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgãos responsáveis pela emissão do documento de conclusão de ensino médio, ainda podem recorrer da decisão.
Na educação domiciliar, ou homeschooling, os pais decidem ser os principais responsáveis pela educação dos filhos, em vez de delegarem à escola. As motivações que levam os pais a optarem pelo método são distintas, desde garantir a prevalência de convicções e valores considerados essenciais por algumas famílias até evitar o risco de assédio moral, ou bullying, caso da estudante de Brasília. Especialistas da área da educação e do Direito falam sobre a educação domiciliar, que no Brasil é uma prática não regulamentada. Ao contrário de outros países como Estados Unidos e Inglaterra, em que o método de ensino domiciliar é comum.
O secretário-geral da Comissão de Direito Constitucional e Legislação da OAB/GO, Victor Phillip Sousa Naves, especialista em Direito Constitucional, esclarece que a Constituição impõe ao Estado o dever de garantir o ensino fundamental e médio; e que é dever também dos pais auxiliar os filhos neste sentido, sob pena de incorrer no crime de abandono intelectual.
Ele observa que o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que não existe previsão constitucional e legal que reconheça ou autorize os pais a ministrarem aos filhos disciplinas sem o devido controle do poder público. Assim, essa prática não seria possível hoje no Brasil por falta de regulamentação (STJ MS7407-DF).
“A meu ver, a falta de regulamentação do tema não pode sobrepor o direito do indivíduo de acesso aos níveis mais elevados de ensino, conforme a capacidade de cada um. O Poder Judiciário, quando invocado, tem o dever de resguardar o direito dessas pessoas, desde que essa capacidade esteja devidamente evidenciada”, avalia Phillip. A cientista social especialista em novos paradigmas da educação e professora do curso de formação de professores em didática e gestão educacional do Ipog, Rosa Maria Viana, informa que o Ministério da Educação (MEC) apresenta parâmetros extraordinários para a educação brasileira, como os temas transversais que englobam educação ambiental, cidadania, respeito ao próximo, dentre outros.
Mas na realidade, estes temas nem sempre são valores transmitidos em sala de aula, sendo este um dos fatores que levam pais, com maior renda, a buscarem no ensino doméstico uma alternativa à escola. “Nosso sistema precisa ser mais cuidadoso na formação humana, o foco da educação brasileira está deixando de lado a educação humana. Tem que ter uma educação em valores, para a vida coletiva harmoniosa, para a vida cuidadosa com o ambiente. A escola tem tudo isso, mas não aplica, o que leva os pais a tomarem decisões como esta”, diz.
Defensores da modalidade
De acordo com a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) existem hoje, no País, aproximadamente duas mil famílias adeptas ao ensino domiciliar. A causa defendida por essas famílias seria a má qualidade do ensino. Consideram que as escolas regulares não estão cumprindo sua função e ajuizam eles mesmos ensinar os filhos.
Na opinião da especialista em novos paradigmas da educação, Maria Viana, a não aceitação por parte de órgãos regulamentadores em reconhecer a qualificação de alunos educados em casa é, em seu ponto de vista, um retrocesso burocrático ao reconhecimento do saber e novos métodos de ensino.
“É uma burocracia desnecessária porque, na verdade, se os pais têm competência para ensinar ou contratar um professor para tal e este aluno tem condição de acompanhar, o que precisa ser feito por parte das autoridades é reconhecer e ponto final”, enfatiza. O advogado Victor Phillip observa que a “falta de regulamentação depende da vontade do poder político em incluir em nosso ordenamento jurídico tal previsão, para que tal modalidade de ensino seja efetivamente considerada para todos os fins legais”, explica.
Não à Educação domiciliar
Para a pedagoga Patrícia de Almeida Araújo Bendô, quando os pais assumem o papel de mediador do conhecimento cognitivo dos filhos, pouco importando as razões, estes acabam por construir pontes e barreiras. As pontes, avalia Patrícia, são criadas quando se estabelece um elo entre pais e filhos que propicia maior integração familiar. Mas alerta que, em contrapartida, as barreiras são consequência também desta ação. “Não proporcionar o convívio do indivíduo no espaço físico comum, a escola, pode limitar outras conquistas, além do conhecimento cognitivo, a socialização, a percepção dos valores adquiridos na convivência familiar, a convivência com os diferentes e a aceitação dos mesmos”, constata.
Até 1971, o ensino obrigatório e gratuito no Brasil contemplava apenas os quatro anos do chamado Curso Primário. Após 1971, passaram a ser considerados os oito anos do Ensino Fundamental e, em 2010, chegou-se a nove, com a decisão de iniciar a escolarização obrigatória aos seis anos. Para educadores e sociedade em geral, essas são conquistas que trazem diversos benefícios que vão muito além da discussão da questão legal.
“O Ministério da Educação (MEC) determina critérios para que cada degrau do ensino seja pré-requisito para outro, e apesar de não haver regramento para a autenticação da prática do ensino domiciliar, esse órgão é o que rege a legislação educacional, ainda que falho. Portanto, acredito que o espaço físico ainda é um lugar de crescimento do indivíduo como um todo”, conclui.